segunda-feira, 11 de abril de 2011

Imigrantes

A mostra “Imigrantes” do artista plástico Chema Rodríguez, um espanhol radicado em Salvador há 14 anos, transforma o Espaço Cultural dos Correios numa experiência estética e emocional. As telas a óleo pintadas por Chema oferecem ao espectador um olhar sobre esse fenômeno que é tão antigo como a própria humanidade: o afã quase incontrolável de expandir-se, de buscar novos horizontes e expectativas de vida.

A exposição possibilita ao visitante percorrer esse caminho de partidas e chegadas, pois Chema revela em sua obra uma mirada do viajante que se aventurou em direção ao Novo Mundo, deixando para trás o seu porto, sua Europa e sua gente.
“A vida me levou a fazer parte de ambos cenários e a sentir na própria pele as alegrias, as amarguras, o enriquecimento e a multiplicidade de experiências do fenômeno da migração. É por isto que sinto que este é o momento de expressar e compartilhar as vivências e reflexões que emanam destes deslocamentos humanos.”, ressalta o pintor.


A Beleza revolucionária
Para Chema Rodríguez “a beleza é o único princípio realmente revolucionário em pintura”. Este é o lema ou o leme principal do seu fazer pictórico. Pinta porque para ele isto é essencial e porque pintar lhe conecta com a Beleza, impulso fundamental para viver. Para ele, pintura no sentido mais matérico do termo é o caminho, a ponte ou o barco que podem conduzir o ser ao encontro da Beleza e é, em alguns casos, a materialização da própria Beleza. Chema precisa de pincéis, tela, do cheiro e da textura da tinta a óleo, do aguarrás, dos trapos sujos no atelier. O artista necessita mergulhar na própria matéria da pintura antes de imprimi-la sobre a tela.
Seu processo é cuidadoso, pois estabelece quase uma relação amorosa com a obra. Mas, o espectador raramente vai vê-lo pintar. Chema não é um pintor de obras a plain air. Sua aventura é solitária, recôndita, íntima. Ele construiu um mundo particular em seu atelier e ali só há espaço para ele, seus quadros e sua música que o acompanha no processo criativo. O pintor necessita desse ninho, desse acolhimento e recolhimento. Diria que para ele pintar é uma experiência mítica e mística. Sublime.
Por isso, Chema consegue colocar-se de maneira tão sincera nas suas obras. No espaço de seu atelier o pintor conquista a intimidade com o tema que alcança formas poderosas e expressivas. Pinceladas enérgicas e cores intensas dão volume e contorno às ideias. Nos quadros que pinta, o artista não esconde suas paixões: pelos pintores que sempre o fascinaram, por sua terra natal, pela luz que o atraiu à Bahia, pelos tipos populares e anônimos.

O modo de fazer arte de Chema é a pintura. Acima de tudo e de todas as maneiras de expressar-se, de emocionar-se, para ele, está a pintura. Na exposição Imigrantes, o espectador tem contato com as esculturas cênicas em forma de objetos agrupados, coisas esquecidas em uma estação ou na memória. Mas estes elementos dispostos são apenas a figuração e a materialização daquilo que mais tarde inspirará um quadro ou impulsionará o movimento do seu pincel. Chema faz Pintura.  O objeto está ali: a mala, o chapéu, o guarda-chuva. Mas é feito, como disse Spade/Bogart em “O falcão Maltês”, numa clara referência a Shakespeare, “do mesmo material de que os sonhos são feitos”.

 E a pintura de Chema é isto: a materialização do sonho que, ao fim e ao cabo, é feito de nossos rastros. É um desejo, é uma viagem no tempo e contra o tempo, é um grito de prazer ou um pedido de socorro, é uma vontade de precipitar-se no abismo ou de alçar voos, de navegar e de experimentar o balanço de uma balsa apinhada de forasteiros ou de vislumbrar uma janela ensolarada da escotilha de um barco.

Não por acaso encontro muitas referências ao cinema e à literatura ou teatro clássicos na obra de Chema Rodríguez. A obra pictórica do pintor está cheia de homenagens e traz como bagagem os inúmeros filmes clássicos que viu durante sua juventude, os livros que eram leitura obrigatória na Espanha, músicas clássicas que o embalaram no jardim de infância, óperas e o coral da igreja com os quais emocionou-se. O amante do cinema perceberá uma referência a Rebecca, de Hitchcock, seu filme preferido de Hitchcock na tela Nostalgia.

O espectador atento poderá ver um cenário quase operístico nos inúmeros personagens que aguardam no cais de Embarque, ouvirá uma sinfonia de Bethovem na tormenta em alto mar que ameaça os viajantes no quadro Em busca de uma quimera ou uma fuga de Bach em um solitário olhar ao horizonte em A espera entre a angústia e a esperança. A pintura de Chema Rodríguez reúne muitas das Belas Artes, pois cada pincelada está contaminada por elas. Mas é, ao mesmo tempo, pura pintura. Essência.


Homenagens ao Velho Mundo
É sua paixão pela Beleza, e em especial aquela plasmada nas obras de arte que reverencia, que move o pintor a fazer citações e homenagens nos seus quadros. Desta forma, o espectador mais cuidadoso identificará um perfil de Davi de Michelangelo no viajante de A espera entre a angústia e a esperança. Porém, o rosto que está imerso nas cores fantásticas do crepúsculo é o de Chema, quando rapaz, ainda estudante de Belas Artes em Bilbao (Espanha). Nesse quadro estamos diante de um quase autorretrato.

Sua paixão confessa por Velázquez está expressa em cada quadro, mas explícita, sobretudo, no rosto que fita o espectador no Em busca de uma quimera. O detalhe do rosto do imigrante nos conecta de imediato com aquele do soldado situado no extremo do quadro à direita em A rendição de Breda de Velázquez. Rosto que muitos historiadores da arte afirmam tratar-se de um autorretrato do pintor espanhol.
Ainda na mesma tela, Em busca de uma quimera, podemos ver latente a composição que lembra um coração invertido e o conflito presentes em A Jangada da Medusa de Théodore Géricault. Chema faz na obra uma referência explícita ao quadro do pintor francês na figura que acena na proa do barco, como um símbolo de esperança diante do desespero.
Sorolla encontra-se homenageado nas cores e pinceladas dos entardeceres. Rafael será lembrado no quadro Embarque, graças à figura que se ressalta à direita e que porta um vaso na cabeça, como a aguadeira que olha estupefata o papa fazedor de milagres em O Incêndio do Borgo (1514-17).

Conflitos latentes na figura e no fundo
Mas, o que é que realmente está latente em todas estas referências? Uma jangada à beira do naufrágio, uma cidade que é obrigada a render-se após uma guerra sangrenta, um incêndio no Borgo de San Pietro, em Roma? Trata-se do embate, do choque, da guerra, metáforas de nossos conflitos interiores. Partidas e chegadas, achados e perdidos, ganhos e perdas, o próximo e o distante, luz e sombra, vitórias e derrotas, esperanças e desgarros. Sob o véu da beleza sempre está latente a guerra, como a estonteante Helena foi o motivo e o princípio gerador da Guerra de Tróia. Ou como diz Trías, o sinistro é condição e limite do Belo. Sempre haverá um conflito subjacente à obra de Chema. Oposições que nos conectam com o Belo.
Nesse sentido, há algo que permeia toda a obra do artista contida na exposição: a melancolia. Traço marcante da vida do artista, como de todo aquele nascido sob o signo de Saturno, o caráter melancólico soma-se a cada pincelada. Porém, trata-se de uma melancolia criativa, que impulsiona o artista a caminhar, a enfrentá-la, a mergulhar e emergir com suas descobertas.
O imigrante de Chema transforma-se no ser que abandona a melancolia. Ela existe, aparece como causa e consequência do desgarro, mas não o deixa estacionado. Os artistas têm esta marca melancólica e por isto criam. Por isto avançam, mudam de estado, de país, buscam a luz, buscam motivos e tipos físicos diferentes, fogem das amarras, do sedentarismo, fogem das âncoras, partem. Van Gogh, Gauguin, Da Vinci,... A Bahia tem bons exemplos: Caribé e Verger, dois imigrantes que aqui encontraram seus verdadeiros motivos.

As malas e baús pesados presentes nos quadros de Chema metaforizam esta viagem tanto real quanto interna. Simbolizam esta necessidade de avanço. Leva-se muito, carrega-se uma porção de objetos que nos ligam a este passado e à pátria que deixamos para trás. Baús empilhados cheios de histórias, de recortes e retratos, de abrigos que nunca mais serão usados na nova terra, tão quente, tão calorosa. Por isto, de tão inúteis, serão esquecidos na estação, no cais, para somente fazerem parte da cerimônia de despedida, como se uma espécie de uma bandeira se tratasse.

Chema, afinal encontra sua praia. A luz do sol refletida na parede de um antiga igreja na praia do Rio Vermelho vislumbra até quase cegar em As janelas vistas do barco. O artista não está só. Ao lado, a mulher, companheira e cúmplice, o acompanha na aventura da imigração, em busca da beleza e da arte que se ocultam nas paisagens e gentes baianas. No ponto de chegada, o aconchego.
Ao vestir a pele do imigrante, Chema fala do particular e do universal. Plasma em suas obras este caminhar e deslocar-se que é constante na espécie humana desde seus primórdios. Fala da esperança e do desejo da descoberta. Mostra a espera, o trajeto, o desgarro. Passagens. Refaz o caminho dos antepassados. Mostra, através do olhar sempre inquieto e curioso do forasteiro, novos horizontes. Garante, ao espectador, que existe algo adiante. Aponta para um futuro e para um sentido.

Vanessa Brasil campos Rodríguez
Curadora da exposição Imigrantes



 

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